domingo, 24 de setembro de 2017

O de sempre

         
          
Gostaria de compartilhar com vocês uma crônica escrita por uma amiga muito querida. Quando ela compartilhou o conteúdo comigo, pensei "Preciso colocar isso no blog". Acredito que reflexões importantes podem ser estimuladas em nós pela leitura deste texto. Talvez você precise pensar sobre isso hoje, acerca das escolhas que tem feito e da vida que tem vivido. O de sempre? Até quando? Até quando você quiser escolher diferente. Você pode, nós podemos. Boa leitura! E ótimo domingo! 

O DE SEMPRE

           "O despertador toca no horário de sempre. Levantou-se. Fez sua higiene pessoal. Vestiu as roupas que trouxe da lavanderia na noite anterior. Pegou as chaves do carro, a pasta com documentos e deixou seu apartamento. Entrou no elevador. Lá estava o vizinho de sempre. “Bom dia!”
            No caminho até seu trabalho parou na padaria de sempre e fez um gesto para o balconista de sempre.

— O de sempre, chefe? — um café sem açúcar e um pão na chapa.

            Durante o trajeto até a corretora de seguros onde trabalhava ouvia as músicas de sempre, aquelas que o remetiam de volta à sua adolescência quando sonhava que seria um homem milionário.
            Já em sua mesa no escritório, organizou os objetos, as canetas, os documentos e seu laptop na posição de sempre. Respirou fundo, fez uma careta e antes de iniciar suas atividades foi até a cafeteira pegou mais um café sem açúcar : — Amargo como a vida! — costumava dizer.

            Voltou para sua mesa, examinou sua agenda, verificou para quais “bons” clientes ele deveria ligar, e quais mandaria apenas um e-mail ou mensagem.

            O telefone do escritório toca, o amigo da mesa ao lado atende:

— Ô de sempre! Sua cliente quer falar com você.
— Quê?
— Sua cliente de sempre, a dona Emília, quer falar com você! — revirou os olhos. Bufou. — Diga que não vim trabalhar. Que estou de férias. Inventa aí qualquer coisa. Tô de saco cheio hoje.

            O amigo retorna:

— Disse que você ainda não tinha chegado e que ela poderia ligar após o almoço. Coitada, cara! É uma senhora muito idosa, sempre tratou tudo com você e você devia dar mais atenção!
— Esse é o problema! Estou cansado disso tudo, ela liga toda semana pra falar do seguro de vida, que vai morrer, que vai ficar tudo pro filho único... Eu devendo a prestação do meu apartamento e ela falando do seguro de milhões. Dá um tempo!

            Após o almoço o telefone toca:

— Oi dona Emília. Sim. Tudo certo... Sim... Exatamente. Meus documentos? Pra quê, Dona Emília? Olha dona Emília... estou num péssimo dia... Eu vejo isso pra senhora depois. A senhora também, fica com Ele.

            Fim de expediente. Retornou pelo mesmo trajeto. Chegou em casa, jogou as chaves, a pasta. Ligou a TV no canal de sempre:

— Que vida miserável... todo dia a mesma coisa, a mesma coisa. Dormiu ali mesmo, no sofá. O despertador não tocou. Saiu atrasado. Encontrou outra pessoa no elevador. Vizinha nova. Uma senhora sorridente e simpática.

 — Bom dia jovem!
 — Pra senhora também.  — ele retribuiu timidamente

            Pegou outro trajeto. Sem tempo para o desjejum de sempre. Parou numa quitanda. Comprou duas maçãs. Chegou no escritório. O dia de trabalho fluiu normalmente. Nenhuma ligação da cliente de sempre.

            Numa manhã de muito trabalho, recebeu a visita de um advogado, o representante de dona Emília, que lhe informou sobre o falecimento de sua antiga cliente. Viera tratar do seguro de vida deixado para o filho da falecida. Ficou envergonhado, por dentro, por ter sido meio rude com ela na última vez que ela lhe telefonara. Poderia ter sido mais amável. Porém, seu rosto empalideceu quando o advogado lhe contou que ela havia cogitado deixar uma parte de sua herança, como agradecimento, para o rapaz que sempre a atendia na corretora, uma vez que a soma era muito alta e tudo ficaria para o filho único, que não era muito presente na vida da mãe. Deveria ser uma surpresa, mas ela não teve tempo de alterar o testamento. Morrera em casa de causas naturais em companhia de sua enfermeira. Chorou. Sentiu pena de sua cliente de sempre. Sentiu vergonha de si mesmo.

            — Dona Emília deixou um bilhete assinado por ela, e pedia que o senhor a desculpasse por ter sido inconveniente em telefonar num dia que o senhor estava com problemas.

            Sentiu-se péssimo, sem chão. Como se o mundo se fechasse a sua frente. Deixou o trabalho mais cedo, Chegou em casa em silêncio e no silêncio permaneceu.

            Acordou. Pegou as chaves. Entrou no elevador. A vizinha simpática estava lá.
— Bom dia pra senhora! — disse amavelmente para a senhora. Lembrou-se de dona Emília, sempre cortês e sorridente.

            Parou na padaria de sempre. Perguntou pelo balconista que sempre o atendia.
— Ah, ontem foi o último dia dele aqui. Arrumou um emprego melhor. O senhor vai querer o de sempre?

            Foi como um choque em sua mente; a cliente de sempre havia falecido, o balconista de sempre conseguiu um emprego melhor... A vida não tinha que ser sempre igual, ele não precisava fazer sempre as mesmas coisas... A chance da mudança estava nele, se assim desejasse.

            — “Senhor... vai querer o de sempre?” — retirado de seus pensamentos, piscou várias vezes e disse — Não, não. Quero um suco de laranja e um misto quente, por favor!"

Glaucylene Machado

Respeite os créditos do autor ao compartilhar este conteúdo 

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